sexta-feira, 7 de novembro de 2008

Entre a faxina e os livros de Direito

Faxineiro banca curso universitário com o salário que ganha de empresa que presta serviço ao TJ de Goiás

“Anota aí: Francisco A. Patrício. Mas o pessoal me chama de Irmãozinho e sou faxineiro”. As palavras vêm de um homem de 32 anos, baixo e moreno. Ele é quase elétrico.
Enquanto conversa, olha para todos os lados, levantando os braços e cumprimentando as pessoas que passam pelos corredores do Tribunal de Justiça de Goiás. Parece ser de sua natureza fazer várias coisas ao mesmo tempo. Não é por acaso que, nos intervalos de almoço, entre uma garfada e outra, mergulha os olhos nos livros do curso de Direito, que freqüenta há 6 meses.

Além da franca simpatia, Francisco atrai a atenção no local de trabalho, onde está há mais de dois anos, também por sua força-de-vontade. Trabalha das 6 às 16 horas e ainda encontra disposição para ir à faculdade à noite (as aulas são das 18h30 até as 22h15). Detalhe: ele vai de um lado para o outro pedalando sua magrela, de mochila nas costas. “Esse cara é dedicado. Serve de exemplo para muita gente”, é o que costumam dizer dele.

Satisfeito com o reconhecimento, ele preferia ser mesmo exemplo era para os seus irmãos (ele tem 10). Nenhum quis ir muito adiante na vida escolar. “Ah, moço. Pouca gente estudou na minha família. Nem meus irmãos, nem meus pais, nem meus avós. Só eu mesmo que nasci com essa vontade danada de aprender as coisas”, explica ele, se calando logo a seguir e parando o olhar em algum ponto incerto no infinito. “Mas acho que ninguém teve como estudar porque vida na roça é muito difícil”, complementa.

Nesse momento é preciso fazer um flashback. Francisco nasceu em Iguatu, no Ceará. Filho de família pobre, desde cedo ajudou o pai na roça e pouco pôde estudar. Na terra natal, foi só terminar a quarta série primária e mais nada. “Não dava tempo. Tinha de trabalhar”, explica. Com a vida de sol a sol (e bota sol nisso!) cada vez mais difícil, os irmãos aos poucos foram indo tentar a sorte em São Paulo, sina comum aos nordestinos.

Como pouca coisa melhorasse ali também, alguns vieram para Goiânia. Foi aí que Francisco decidiu botar o pé na estrada. Era 1998 quando, com uma trouxa de roupas nas costas e muita coragem no cara, desembarcou na rodoviária da capital. Aqui trabalhou de servente de pedreiro e serviços gerais, até se tornar faxineiro, há dois anos e meio. Mas a vinda para Goiás significou mais do que mudanças de emprego.

É o próprio Francisco que explica. “Vim chegando aqui só com a quarta série e vi que não dava. Se a pessoa quer melhorar precisa de estudo. Eu sempre tinha vontade de voltar a estudar. Então entrei num supletivo e fui adiante. Não parei mais. E olha só, agora sou um estudante de Direito. Mas a minha vida mudou, né?”, comenta, com um orgulho não disfarçado.

Matemática cruelMas Francisco sabe que não é fácil levar adiante o seu sonho de se formar em Direito. Afinal a matemática é desleal com ele. Não que essa seja uma disciplina do curso. É a matemática financeira do cotidiano que pesa. Ele ganha R$ 415 no trabalho. Com os descontos cai para cerca de R$ 350. Já a mensalidade do curso é R$ 261 já com o abatimento de 50% de uma bolsa que recebe. Na ponta do lápis, sobra a ele menos de R$ 100 para as demais despesas.

E como é possível viver assim? “Olha, com a graça de Deus eu tenho pessoas amigas que me ajudam. Minha família também ajuda. Tem ainda os colegas aqui do tribunal que sempre acodem. E assim eu vou tocando para frente”, explica, sorrindo. Parar ou desistir? “Nunca! Vou nessa até o fim. Pode escrever aí que eu garanto”, reforça.

Pelo menos Francisco ainda não tem gastos com filhos já que, segundo ele mesmo define “sou moço solteiro”. A maioria das despesas da casa fica por sua conta, já que um dos irmãos fica à disposição de cuidar do outro, que é portador de necessidades especiais. “A gente vai dando duro para sempre melhorar”, explica. Mesmo com a vida regrada em Goiânia, ele considera que é bem melhor do que seria no Ceará. “Não tenho dúvidas. Meu lugar de vida agora é aqui. Mas ainda gosto muito da minha terra, tanto que sempre que posso volto para visitar meus parentes”, comenta.

Sonhos vêmConcluindo o primeiro semestre do curso de Direito, Francisco se diz muito satisfeito com o que vem aprendendo. Jura de pés juntos que não está encontrando qualquer dificuldade com as matérias. “Estou indo muito bem. Minhas notas são boas e estou conseguindo aprender muitas coisas interessantes. Acredito que, dentro da sala de aula, não terei dificuldades em me formar”, diz.

O gosto mais direto pelo Direito veio quando ele foi trabalhar no Tribunal de Justiça. Antes disso acalentava um sonho distante de se tornar advogado. Ao acompanhar mais de perto a profissão na prática se apaixonou. Não foram poucas as vezes que, varrendo o pátio ou limpando o chão, sonhou um dia ser um daqueles homens de terno e gravata que têm a responsabilidade de defender outras pessoas.

“Eu quero terminar o curso e fazer concurso público. Quero me tornar advogado do Estado. Espero ajudar tanta gente que precisa e, de quebra, ajudar a minha família que não teve a sorte de estudar como eu”, planeja.

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