terça-feira, 25 de agosto de 2009

Renascimento

O Verdadeiro lugar de nascimento é aquele em que lançamos pela primeira vez um olhar inteligente sobre nós mesmos (...).” (Marguerite Youcenar)

A mensagem acima é lida pelo prisioneiro João Guilherme Estrella, ao receber um cartão da juíza que lhe concedeu indulto de Natal. Essa é a cena inicial do filme Meu Nome Não é Johnny, baseado em fatos reais. Mostra como um jovem de classe média, bonito, simpático, com todas as chances de construir uma vida gratificante, pega o atalho das drogas até perder o rumo por completo. De usuário, torna-se um dos maiores traficantes de cocaína do Rio de Janeiro. As festinhas animadas, a irreverência, a loucura dão lugar a uma realidade sombria. Quem impõe limites a João não são os pais, mas a polícia e a Justiça. Conhece a brutalidade da cadeia, os horrores de um centro de internação para doentes mentais. De todos os excessos, restam o amor incondicional da mãe e a fidelidade de poucos amigos. João vai ao fundo do poço, mas consegue se reerguer. Consegue o olhar inteligente sobre si mesmo.

Como no filme protagonizado por Selton Mello, a vida está sempre a nos cobrar um (re)nascimento. Seja nas relações mais íntimas ou em âmbito coletivo, não adianta disfarçar, protelar. São compreensíveis os mecanismos de defesa, mas atrasam ou mesmo privam uma evolução pessoal e social. Sem olhar o que precisamos, realmente, ver, encarar, não há como escapar do risco de fuga ou repetição destrutiva.

A dependência química é bem explícita quanto aos perigos do escapismo e dos prazeres destrutivos, dos vícios e das paixões. Porque mesmo o que aos poucos nos mata, também nos permite gozar – e, como desvendou a psicanálise, não raro nos dá prazer justamente pelo teor de morte contido.

Mas há formas mais sutis de comodismo ou medo que barram mudanças.

O casamento em que não há mais diálogo nem respeito, mas continua sendo mantido assim anos e anos, porque não se vislumbra perspectiva de transformação.

O distanciamento entre pais e filhos, um acenando para o outro com uma compreensão de fachada, até o momento em que a casa cai – o filho mimado é flagrado em ações delituosas, criminosas.

O trabalho sem motivação, numa engrenagem que não pode parar, mesmo que não faça sentido.

A descrença na política e o conformismo generalizado, obscurecendo direitos e enfraquecendo a cidadania. “Sempre foi assim, não seria diferente agora.” Um atestado de incompetência e inércia.

Ninguém está imune a derrapadas e recaídas. Mas também na nossa essência está a vontade de viver, de resistir, em situações de pequenas ou grandes dificuldades. Por exemplo, quando a morte deixa de ser simbólica e se apresenta concreta, no diagnóstico de uma doença fatal ou na perda de alguém muito querido. No livro Sobre a Morte e o Morrer (Martins Fontes, São Paulo, 1994, tradução de Paulo Menezes), a psiquiatra Elisabeth Kübles-Ross descreve os estágios vivenciados por doentes terminais, a partir de uma série de entrevistas com eles. A pessoa passa por negação e isolamento, raiva, barganha, depressão e aceitação, combinando sinais de um ou outro estágio simultaneamente. Mas, no gráfico desses “estágios do morrer”, há uma constante: “Qualquer que fosse o estágio da doença, quaisquer que fossem os mecanismos de aceitação usados, todos os nossos pacientes mantiveram, até o último instante, alguma forma de esperança”, constatou ela.

Parece que estamos fadados a acreditar, a buscar o tal olhar inteligente sobre nós mesmos, até quando somos tomados pela tristeza e pelo desânimo. Muitos conseguem renascer. Outros tantos seguimos tentando, com mais ou menos dor, mais ou menos otimismo. E, se não for por essa via, a da esperança e otimismo, será pela crueldade dos fatos, da qual nos lembrou com palavras certeiras Jorge Luis Borges. “Ditosos os que sabem que o sofrimento não é uma coroa de glória. (...) Desventurado aquele que chora, porque já tem o hábito miserável do pranto.”

Vale retomar o filme Meu Nome Não é Johnny, que termina com outro recado da mesma juíza: o de que a história de João Estrella é a prova de que é possível, sim, recuperar seres humanos.

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