sábado, 4 de junho de 2011

'A Igreja é um pedaço do mundo medieval'


Renato Conde Sua fala é mansa e doce, mas suas ideias são contundentes. Aos 82 anos e prestes a publicar mais um livro - O Cuidado Necessário, que sai ainda este ano pela Editora Vozes -, o teólogo Leonardo Boff ministra hoje em Goiânia a palestra Saber Cuidar, no cine Lumière do Shopping Bougainville, às 10h, em evento promovido pela Unipaz Goiânia. Mesmo se recuperando de uma cirurgia, Boff fez questão de vir. Para o homem que foi condenado a ficar em silêncio pelo Vaticano em razão de sua defesa da doutrina da Teologia da Libertação, no início dos anos 1980, falar é primordial. Ele conversou com O POPULAR assim que chegou a Goiânia e não se absteve de emitir opiniões fortes sobre temas que conhece bem, como ecologia, Igreja Católica e dogmas. Nesta entrevista, Leonardo Boff, que deixou a vida eclesiástica em 1992, quando foi ameaçado de receber outra punição do Vaticano por suas pregações, diz que o debate em torno do Código Florestal só teve viés econômico, aponta para o risco de a Amazônia ser internacionalizada e acusa a Igreja Católica de ter ficado mais retrógrada e de não ter "acertado o passo com a modernidade". Ele revela que sente tristeza ao ver o papa Bento XVI - o mesmo cardeal Joseph Ratzinger que conduziu seu julgamento quando Boff se sentou na cadeira que fora ocupada por Galileu Galilei 400 anos antes -, critica os padres cantores e midiáticos e afirma que é preciso respeitar o amor entre pessoas do mesmo sexo e reconhecer os direitos dos homossexuais.

Saber Cuidar é o nome de um de seus livros. Estamos sabendo cuidar do mundo, do próximo?

Uma das deficiências maiores em nossa cultura e no mundo inteiro é o cuidado. O aquecimento global é fruto da falta de consciência dos seres humanos. Para mim, o cuidado é tão essencial que, se daqui em diante, não cuidarmos do clima, do solo, do ar, teremos uma catástrofe humanitária e ambiental. Há uma tradição filosófica, retomada pelo maior pensador do século 20, Martin Heidegger, de que a maior característica do ser humano é o cuidado. O ser humano precisa ser cuidado e sentimos em nós a necessidade de cuidar. Assim é o planeta inteiro. Se não o cuidarmos, ele não fornece os bens que precisamos para a vida. O planeta não cuidado pode entrar num processo de enfermidade e diminuir a bioesfera para poder sobreviver, equilibrar os seus climas, com a consequência de que milhares vão desaparecer, não excluída a própria espécie humana.

A votação do novo Código Florestal no Congresso virou objeto de disputa política. Como o senhor avalia esse episódio?

O enfoque é totalmente equivocado. O enfoque está sendo econômico quando deveria ser ecológico, o da floresta em pé. Seria um benefício para todo o sistema Terra. Mantendo a floresta em pé, pelas mil formas de extrativismo e o racional aproveitamento da madeira, o que poderíamos produzir, que seria muito mais que todo o gado e toda a soja. A Amazônia equilibra todos os climas da Terra e lá está a maior biodiversidade e a maior reserva de água. Nosso Parlamento agiu de forma totalmente irresponsável nessa questão. Em momento algum houve essa dimensão ecológica, mas apenas a dimensão econômica. Quanto poderiam ganhar e quanto poderiam perder. E viram a Terra apenas como um baú de recursos que nós podemos usar. Hoje, toda a ciência diz que a Terra é um organismo vivo que se autorregula e nós somos filhos desse organismo. Esse discurso, nem os mais progressistas suscitaram no Parlamento.

Estamos assistindo a uma nova onda de eliminação de líderes camponeses na Amazônia. Isso ocorre desde os anos 1960, passou por Chico Mendes e permanece hoje. Por que esse quadro não muda?

A tragédia não acaba porque, por trás, há grandes corporações nacionais e internacionais interessadas no agronegócio de exportação. O gado dá dólar, vida humana não dá dólar. Por isso, todas as pessoas que a Comissão Pastoral da Terra indica que estão ameaçadas de morte, já que elas denunciam quem desmata, são eliminadas porque prejudicam o negócio. O Estado brasileiro fica impotente, dadas as dimensões da Amazônia. Ele não consegue nem controlar o desmatamento. Já foram desmatados 700 mil km². Isso corresponde a São Paulo e Minas Gerais juntos, equivale a metade da Europa. Quase metade dos deputados e senadores está ligada ao agronegócio, à soja, ao gado e não tem nenhum interesse em preservar essa herança que recebemos. Não temos os meios de fiscalizar essa extensão imensa de florestas para enfrentar esses verdadeiros assassinos da vida. Há o risco de que, com o aumento da consciência mundial e da importância das florestas, a Amazônia seja declarada de interesse vital mundial e o Brasil não tenha mais a soberania completa sobre ela. Isso está muito presente em grupos internacionais de que participo, com ativistas e políticos, que dizem que a região amazônica é vital para o planeta e que os sete países que nela estão não têm políticas de cuidá-la, sem tecnologia e fundos suficientes para isso. Eles querem, então, gerenciá-la para o bem da humanidade. Perderemos, assim, mais da metade de nosso País.

Quando houve o assassinato da missionária Dorothy Stang, militante das Comunidades Eclesiais de Base, houve o debate se, por uma postura mais conservadora da Igreja, trabalhos como o dela não teriam ficado mais desprotegidos. O senhor concorda com essa avaliação?

Quem acompanha as comunidades de base se dá conta que elas têm uma grande vitalidade e presença nas bases da sociedade. Ocorre que elas não têm mais a visibilidade que tinham antes. Na época da ditadura, nenhum grupo poderia se reunir, só as comunidades de base, que se reuniam sob a proteção da Igreja. Elas continuam lá e muitas delas estão no interior da Amazônia, aqui no Cerrado e são muito fortes no Norte e Nordeste, onde a Igreja é institucionalmente mais fraca. Agora, elas assumiram uma consciência ecológica que não tinham antes. Eu fui um dos que insistiram para que as CEBs (Comunidades Eclesiais de Base) passassem a ser Comunidades Ecológicas de Base. Elas se colocam como guardiãs da floresta e denunciadoras de quem desmata, de quem queima. Não é que a Igreja não proteja; ela também é ameaçada, bispos, padres. A situação é tão grave que o próprio Estado brasileiro se sente impotente e, quando atua, atua esporadicamente e, pouco tempo depois, tudo volta ao que era antes. Isso é uma tragédia.

O seu livro mais conhecido e polêmico é A Reinvenção da Igreja . O senhor acha que a Igreja vai se reinventar um dia?

Eu acho que devemos distinguir a Igreja hierárquica, do papa, dos bispos e dos padres, da Igreja comunidade, onde há grandes intelectuais. A Igreja institucional e hierárquica ainda não acertou as contas com a modernidade. É um pedaço do mundo medieval que subsiste em meio ao mundo moderno, que mantém ideias fundamentalmente contra a vida, porque ela proíbe a utilização dos contraceptivos, da camisinha, o que na África é uma tragédia. Eu creio que duas coisas são importantes. Primeiro, os bispos e a CNBB precisam aprender a viver numa democracia, que significa não ter o monopólio da palavra e da moralidade. A Igreja é uma força entre outras na sociedade e precisa respeitar outras opiniões. Que ela tenha a sua opinião e a diga, é seu direito, mas ela não pode coagir e manipular os fiéis e sua consciência em favor de seus interesses. Segundo, a Igreja tem de escutar a realidade e não repetir dogmas. Ela tem de escutar o povo. A Igreja institucional é monossexual, só é feita de homens. Os bispos e padres não têm mulheres e filhos. É uma visão reduzida que os tornam insensíveis e, às vezes, cruéis em face dos dramas humanos da sexualidade, dos homossexuais e todas essas expressões que devemos reconhecer como fato, respeitá-las e criar um quadro de legalidade para que vivam em sociedade sem serem discriminados e perseguidos. Essa missão civilizatória deveria ser a da Igreja, mas ela reforça o outro lado, como o preconceito e a perseguição, que é contra a mentalidade de Jesus, que era aberto a todos e que disse uma frase extraordinária: "Se alguém vem a mim, eu não mandarei embora." Poderia ser um herege, uma prostituta, um homoafetivo. E digo mais: se entre os homossexuais há amor, há algo misterioso e que tem a ver com Deus, porque Deus é amor. Esse discurso civilizatório deveria ser o da Igreja, para aproximar as pessoas e não afastá-las e torná-las agressivas quanto ao próximo.

O senhor acredita que estejamos vivendo um contra-ataque conservador diante de direitos que começam a ser reconhecidos?

No mundo inteiro há um retrocesso das igrejas, não só da Igreja Católica. Elas voltam à grande tradição doutrinária do mundo, rompem o diálogo com a modernidade, rompem o diálogo com outras igrejas, que era pacificador. À força desse afastamento do mundo, a Igreja está perdendo os pobres, os intelectuais e se transformando em um bastião de machismo, de reacionarismo, de medievalismo. É lamentável. Está havendo uma emigração das melhores inteligências leigas da Igreja e um esvaziamento enorme dos cristãos. As pessoas se sentem cristãs, seguidoras do Evangelho, mas já não sentem a Igreja como um lar. Esses cristãos são substituídos por movimentos carismáticos, conservadores, como a Canção Nova, que fazem da missa um show, esses padres cantores que se promovem mais a si mesmos com o aparato da vestimenta e cantos que nunca falam daquilo que era realmente importante para Jesus, que é o pobre, a justiça, a convivência, a fraternidade. Isso é cantar as rosas e esquecer o jardineiro que está sendo explorado, é falar de Deus, o Pai-Nosso, e dançar diante Dele, mas esquecer do Pão-Nosso, que falta na boca de milhões. Nesse retrocesso, a Igreja deixa de cumprir uma missão mais humanitária, ajudando o ser humano a ter mais alegria, mais sentido de viver, defendendo o fraco e o discriminado, aquele que é invisível.

Quando vê o papa Bento XVI, o que o senhor sente?

Eu sinto profunda tristeza porque ele era meu amigo, me apoiou na minha teologia, publicou minha tese doutoral e tínhamos grande diálogo como teólogos. Eu vejo que ele foi retrocedendo cada vez mais até ser um dos papas mais conservadores que tivemos na Igreja nos últimos séculos. Ele ressuscitou aquela velha ideia medieval de que fora da Igreja não há salvação e que as religiões do mundo são braços estendidos ao céu, mas sem a certeza de que Deus os atenda; de que as demais igrejas não são igrejas, tendo só elementos eclesiais. Essas são formas de diminuir, difamar, caluniar os outros e eu lamento profundamente a atitude regressiva dele, que deixou de ser um teólogo pensador para ser um burocrata de um grande aparato, que é a Cúria Romana, o Vaticano.

E a lembrança do julgamento que o hoje papa conduziu, quando o senhor se sentou na mesma cadeira em que Galileu Galilei ficou para ser julgado?

Aquela foi uma brutalidade que eu deixei morrer no século passado, porque se ela fosse contada nos dias de hoje, seria inacreditável. Só faltou a fogueira. Os métodos foram os mesmos da Inquisição. A mesma instância acusa você, a mesma instância julga você, a mesma instância o pune. Eu dizia ao então cardeal Ratzinger que até os países ateus, como a Rússia, tinham a divisão das instâncias para preservar a Justiça. Uma instância acusa, outra defende, outra pune e o acusado deve ter um advogado. Eu não tive advogado e fui punido nessa velha e medieval forma de tratar as questões conflituosas dentro da Igreja, o que revela que ela não deu o passo para a modernidade e não entrou na era dos direitos humanos. Ela ainda está na era dos privilégios.

A punição que o senhor recebeu foi o silêncio obsequioso. O que significa ter a voz cassada?

Um teólogo, um escritor só tem a palavra como instrumento, a falada ou a escrita. Quando lhe cassam esse instrumento, ele fica totalmente desarmado. Quando dom Paulo Evaristo Arns, cardeal de São Paulo e que foi meu professor, disse ao papa João Paulo II que ele havia feito comigo o que os militares faziam no Brasil, cortando a palavra, o papa, espantado, disse: "Eu, como os militares? Absolutamente. Libertem agora mesmo o frei Boff para que continue falando, ainda que tenhamos de vigiá-lo pela doutrina. Eu não sou um ditador como os militares latino-americanos." O silêncio obsequioso, que era por tempo indefinido, demorou 11 meses. Eu me recordo bem que na missa da meia-noite de Páscoa, de 1985, o secretário do papa telefonou pessoalmente ao cardeal Arns para que ele me dissesse que eu poderia falar, fazer homilias, que estava livre. Por um lado, João Paulo II era vigilante e conservador, mas era uma pessoa humanitária, que entendia o sofrimento do outro, invalidando uma medida que escandalizou o mundo inteiro.


Palestra: Saber Cuidar, com o teólogo e escritor Leonardo Boff
Data: Hoje, às 10 horas/Local: Cine Lumière, do Shopping Bougainville
Ingressos: 190 reais/
Mais informações: 3941-5556

"O gado dá dólar, vida humana não dá dólar. Por isso, todas as pessoas que a Comissão Pastoral da Terra indica que estão ameaçadas de morte, já que elas denunciam quem desmata, são eliminadas porque prejudicam o negócio. O Estado brasileiro fica impotente, dadas as dimensões da Amazônia"

"A Igreja institucional é monossexual, só é feita de homens. Os bispos e padres não têm mulheres e filhos. É uma visão reduzida que os tornam insensíveis e, às vezes, cruéis em face dos dramas humanos da sexualidade, dos homossexuais e todas essas expressões que devemos reconhecer"

"No mundo inteiro há um retrocesso das igrejas, não só da Igreja Católica. Elas voltam à grande tradição doutrinária do mundo, rompem o diálogo com a modernidade, rompem o diálogo com outras igrejas, que era pacificador"

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